Em palestra na Associação Espírita Fé e Caridade, o expositor Ricardo Mesquita trouxe à reflexão a parábola do filho pródigo, procurando explicá-la à luz do entendimento espírita. Como todas as narrativas apresentadas pelo Mestre Jesus, esta também contém sentido profundo, sem concluir máximas mas fazendo convites à reflexão. Em Sua perfeita pedagogia, convida-nos Jesus a buscar compreender a verdade espiritual por nosso próprio esforço e raciocínio. 

A parábola em questão é repleta de significado, tendo sido inclusive denominada por estudiosos como “o evangelho dentro do evangelho”. A passagem encontra-se em Lucas, que registra:

E disse: Um certo homem tinha dois filhos. E o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte da fazenda que me pertence. E ele repartiu por eles a fazenda. E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua e ali desperdiçou a sua fazenda, vivendo dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades. E foi e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos a apascentar porcos. E desejava encher o seu estômago com as bolotas [ou alfarrobas] que os porcos comiam, e ninguém lhe dava nada.
— Lc 15:11-16.

Conforme nos traz Vinícius no livro A Seara do Mestre, a parábola do filho pródigo, interpretada à luz do entendimento espírita, encerra os seguintes ensinamentos básicos:

  1. Imutabilidade de Deus — princípio sustentado, não teoricamente apenas, mas de modo positivo, condizente com os fatos e testemunhos da vida humana.
  2. Unidade do destino, isto é, a redenção completa pelo Amor e pela Dor, abrangendo todos os pecadores.
  3. A lei da causalidade, ou seja, de ação e reação, causas e efeitos, determinando, em dado tempo, o despertar das consciências adormecidas.
  4. A relatividade do livre arbítrio, o qual não pode ser absoluto, a ponto de ser dado ao homem alterar os desígnios de Deus.
  5. Finalmente, a evolução individual dos seres racionais e conscientes, de cujo número o homem faz parte, processada no recesso íntimo das almas, livre e espontaneamente, como lei natural e irrevogável.

Filho pródigo ou egoísta: quem somos nós?

Como toda parábola de Jesus, esta também nos traz o convite do auto-olhar, do sentir a partir de nós mesmos ao nos identificarmos com as personagens da narrativa. O pai da parábola claramente representa Deus, nosso pai maior. E a história nos coloca duas atitudes muito distintas que podemos erroneamente assumir em nossa relação com Deus, na intimidade de nosso ser ao longo da nossa evolução. 

Com qual dos filhos nos identificamos mais? Aquele que foge à Lei de Deus por se perder nas aventuras passageiras, em busca de prazeres fugazes? Ou o que aceita a Deus em aparência, mas efetivamente quer apenas para si as dádivas eternas, considerando os irmãos inferiores a si e pouco merecedores?

O filho mais moço, identificado “pródigo”, tinha uma personalidade ativa, mais determinada, enquanto seu irmão revela-se acomodado no contexto. No entanto esse filho caçula toma atitude que seria inimaginável perante os costumes da época, o de exigir herança de um pai vivo. 

Sentindo, porém, necessidade de vivenciar outras experiências, à distância do lar, o caçula da família comunica ao pai este desejo e solicita-lhe a parte da herança que lhe cabia. O pai não só lhe atende o pedido, como demonstra compreender ser um acontecimento natural. Divide a herança entre os filhos, de forma justa, não interpondo obstáculo à manifestação do livre-arbítrio dos seus herdeiros.

Conta o médico e palestrante espírita Andrei Moreira em seu livro Reconciliação – Consigo Mesmo, com a Família, com Deus, que o filho que pede herança de pais vivos quer secretamente a morte dos pais. Age, portanto, de forma desrespeitosa mediante algo que deve ser um presente, encarado como legado merecedor de honra e gratidão. “Eis aqui o fruto de nosso sacrifício, para que sua vida comece mais tranquila e para que você possa ir mais longe,” é a mensagem da herança

Não se trata de algo, portanto, que um filho possa exigir. Mas quantos de nós, filhos de Deus, assumimos como obrigação divina nos dar o que julgamos conveniente. Não basta a vida, a família, as condições de oportunidade em que nos encontramos. Queremos mais condições, queremos ter vantagens. Muitos nos colocamos de forma desrespeitosa a ignorar as dádivas que nos são ofertadas diariamente e a exigir de Deus os nossos caprichos. 

Afastamento de Deus: vazio e adoecimento

O texto evangélico informa que “o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua”, isto é, manteve-se distante da proteção paterna, conduzindo a existência na forma que lhe aprazia, segundo os critérios estabelecidos pela vida material. O desregramento da conduta produziu-lhe grande sofrimento.

[…] Empobrecido e arruinado, faminto e roto, espiritual e materialmente, acaba reconhecendo-se o único culpado de tamanha desventura, o único responsável pela crítica situação em que se vê.
— VINÍCIUS (Pedro Camargo). Nas pegadas do Mestre. Item: O pródigo e o egoísta.

Conta também Andrei Moreira que o vazio interior decorrente do afastamento do Criador que infringimos a nós mesmos é fonte de muita dor, origem primária das principais doenças da alma. Muitos, como o filho pródigo, tentamos preencher tal vazio através dos prazeres que temporariamente nos distraem.

Álcool, drogas, pornografia, jogos eletrônicos são exemplos de anestésicos da dor. São fugas socialmente aceitas para a angústia e a ansiedade. Não são, porém, curas eficazes. A cura real passa pela necessidade de trabalhar a si mesmo. 

Quem se perde de si mesmo entra em universo perigoso, e vai se distanciando da própria capacidade de resolução de conflitos e problemas. Assim, esvazia-se em vez de se preencher. A dor, a doença, o vazio íntimo são convites da vida para se conectar com o lugar sagrado de Deus em nossa intimidade.

As aflições que fazem despertar

Arrependendo-se dos erros cometidos, o jovem toma, então, a decisão de retornar à casa paterna. A disposição para se reajustar perante a lei divina é o primeiro sinal de transformação moral que, em geral, atinge os que se transviaram ao longo da caminhada evolutiva. 

As privações materiais que a parábola do filho pródigo menciona são símbolos que ocultam ensinamentos transcedentais: o despedício dos bens herdados (quantos de nós desperdiçamos o tempo, a saúde e a vida), a necessidade de trabalhar como guardador de porcos, a fome tamanha, que faz com que se alimente de sobras. 

A herança desperdiçada representa o desprezo pelos valores espirituais que lhes foram concedidos pelo Criador Supremo: “a retidão do juízo, a candura do sentimento, a sensibilidade da consciência e o discernimento justo do bem e do mal.
— CALLIGARIS, Rodolfo. Parábolas evangélicas. Item: A ovelha, a dracma e o filho pródigo.

A “grande fome” que se abateu sobre aquela terra indica o cansaço, a insatisfação, o fastio que os prazeres materiais, cedo ou tarde, produzem no ser. Chega, então, o momento em que a pessoa se revela faminta de bens espirituais, arde-lhe o desejo de ser bom, de melhorar-se.

Entretanto, nem sempre o Espírito mostra-se suficientemente forte para mudanças extremas. Faz-se necessário passar por um período de ajuste, que lhe conceda as condições apropriadas à verdadeira transformação espiritual.

Reconciliação com Deus: caminho de redenção e cura

E, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão, e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço, e o beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão e sandálias nos pés, e trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos e alegremo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado. E começaram a alegrar-se.
— Lc 15:17-24.

O conhecimento espírita nos faz ver, neste texto do Evangelho, o momento preciso em que o Espírito, cansado de sofrer, busca o amor celestial, reconhecendo-lhe a excelsitude. Este momento está representado na expressão “cair em si.” 

Quando o filho pródigo deliberou tornar aos braços paternos, resolveu intimamente levantar-se. Sair da cova escura da ociosidade para o campo da ação regeneradora. Erguer-se do chão frio da inércia para o calor do movimento reconstrutivo. Elevar-se do vale da indecisão para a montanha do serviço edificante. Fugir à treva e penetrar a luz. Ausentar-se da posição negativa e absorver-se na reestruturação dos próprios ideais. Levantou-se e partiu no rumo do Lar Paterno.
— XAVIER, F.C. Fonte viva. Pelo Espírito Emmanuel. Cap. 13.

É instante de grande valor, pois indica que a criatura humana toma consciência do efetivo estado de evolução espiritual em que se encontra.

Amor incondicional e irrestrito

E o seu filho mais velho estava no campo; e, quando veio e chegou perto de casa, ouviu a música e as danças. E, chamando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo. E ele lhe disse: Veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou e não queria entrar. E, saindo o pai, instava com ele. Mas, respondendo ele, disse ao pai: Eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir o teu mandamento, e nunca me deste um cabrito para alegrar-me com os meus amigos. Vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou a tua fazenda com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado. E ele lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas. Mas era justo alegrarmo- nos e regozijarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado.
— Lc 15:25-32.

O filho mais velho ilustra, na história contada por Jesus, o exemplo do egoísmo. O filho mais velho demonstra tanta rebeldia quanto o caçula. Decide permanecer com o Pai, mas o faz por conviniência, não por de coração seguir seus desígnios. Assim, rebaixa o Pai à sua condição e estabelece uma relação mercantilista com Ele. Quantos de nós acreditamos que por seguir determinadas práticas, regras ou ações exteriores agradamos a Deus? Tornamo-nos merecedores de Seu amor? Quando deveríamos compreender que o amor divino é incondicional.

O egoísta insula-se de todos pela influência de seus próprios pensamentos. É orgulhoso, é sectário. Separa-se dos demais porque se julga perfeito. Jacta-se intimamente em não alimentar vícios, mas nenhuma virtude, além da abstenção do mal, nele se descobre. É um cristalizado: não suporta as consequências dos desvarios, mas não goza dos prazeres da virtude. Sua conversão é mais difícil que a de qualquer outra espécie de pecadores. A presunção oblitera-lhe o entendimento, ofusca-lhe as ideias. Imaginando-se às portas do céu, dista ainda dele um abismo. Supõe-se um iluminado, e não passa de um cego.
— VINICIUS (Pedro Camargo). Nas pegadas do Mestre. Item: O pródigo e o egoísta.

É importante a compreensão de que a Lei de Justiça não se aplica sem a misericórdia de Deus. Somos amados pelo simples fato de existirmos. O conhecimento da Lei de Causa e Efeito pode nos confundir a reduzir o movimento da vida ao merecimento. Lembremos antes de tudo que Deus é amor incondicional. Ele nos ama na condição absoluta em que nos encontramos. O Espírito que se encontra na prática momentânea do mal é tão amado quanto os que praticam o bem. E o amor divino independe da nossa contrapartida. Sintamos em nossa alma tamanho amor a nos nutrir e guiar ao caminho da redenção.

Acreditar que sua crença, sua religião, suas práticas exteriores o aproximam de Deus mais do que outras (crenças, religiões, práticas) trata-se de engano milenar. É o orgulho e a vaidade intelectual nos cegando. 

Jesus traz a parábola do filho pródigo em um contexto de debate com os senhores da lei daquela época. Muitos estudiosos acreditam que na narrativa do filho pródigo há elementos de respostas às provocações dos saduceus e fariseus. Aqueles que detinham o conhecimento mas não o frutificavam. Quando recebemos de Deus a oportunidade do conhecimento devemos fazer dele um instrumento de amor, e não de alimentação do nosso orgulho e vaidade. O conhecimento espiritual é convite a frutificar e nutrir os irmãos — não com pregações, mas com exemplos de amor e com a caridade moral.

Meditemos: o que temos feito do conhecimento espiritual recebido? Optamos pelo trabalho ou pela inércia? Estagnação na vaidade ou reforma íntima real? Cristalização ou movimento rumo ao Pai?

Finalizamos com o comentário de Emmanuel, registrado por Francisco Candido Xavier no livro Justiça Divina, na mensagem O Bom Combate:

Voltando à Pátria Espiritual, depois da morte, estamos frequentemente na condição daquele filho pródigo da parábola, (Lc 15:11) de retorno à casa paterna para a bênção do amor. Emoção do reencontro. Alegria redescoberta.
Entretanto, em plena festa de luz, quase sempre desempenhamos o papel do conviva de cérebro deslumbrado, trazendo espinhos no coração.
Por fora, é o carinho que nos reúne. Por dentro, é o remorso que nos fustiga.
Vanguarda que fulgura. Retaguarda que obscurece.
Êxtase e dor. Esperança e arrependimento.
Reconhecidos às mãos luminosas que nos afagam, muitos de nós sentimos vergonha das mãos sombrias que oferecemos.
E porque a Lei nos infunde respeito à justiça, aspiramos a debitar a nós próprios o necessário burilamento e a suspirada felicidade.
Rogamos, dessa forma, a reencarnação, à guisa de recomeço, buscando a tarefa que interrompemos e a afeição que traímos, o dever esquecido e o compromisso menosprezado, famintos de reajuste.
Agradece, assim, o lugar de prova em que te situas.
Corpo doente, companheiro difícil, parente complexo, chefe amargo e dificuldade constante são oportunidades que se renovam.
Todo título exterior é instrumentação de serviço.
– A existência terrestre é o bom combate. (2tm 4:7)
– Defeito e imperfeição, débito e culpa são inimigos que nos defrontam.
– Aperfeiçoamento individual é a única vitória que não se altera.
– E, em toda a parte, o verdadeiro campo de luta somos nós mesmos.

— Mensagem de Emmanuel, O Bom Combate, do livro Justiça Divina, de Francisco Candido Xavier, capítulo 1.

Acompanhe agora a íntegra da palestra:

*Imagem em destaque via Wikimedia Commons: O filho pródigo, desenho de Rembrandt, 1642.

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